Educação sexual na escola: desvendando as contradições das experiências contemporâneas

por Maria Fernanda Marrega*

O trabalho de Educação Sexual em sala de aula é um laboratório que nos permite um recorte do cenário das relações contemporâneas em suas contradições, complexidades, prazeres e insatisfações. Dialogar sobre sexualidade com adolescentes que, em sua maioria, estão habituados a refletir sobre o tema desde crianças tem uma característica peculiar: a franqueza e naturalidade para abordar questões que permeiam os desejos, temores e preconceitos implícitos nas vivências da sexualidade. Esse artigo pretende divulgar a reflexão acerca de uma parte das atividades realizadas no âmbito da disciplina de Educação Sexual de uma escola particular de classe média alta do interior do estado de São Paulo.

Este trabalho é realizado há onze anos num continuo e é sistematizado por módulos durante o ano. Na atividade em questão, foi realizada uma pesquisa com alunos do Ensino Médio, contendo questões que envolveram temas como o que se espera da primeira relação sexual; o que os garotos e as garotas precisam para se sentirem confortáveis na iniciação sexual; se meninos e meninas devem ter comportamentos diferentes em relação à sexualidade. Os jovens responderam por escrito, sem se identificar, indicando apenas o sexo biológico. As respostas foram separadas nas categorias feminino e masculino e agrupadas conforme a similaridade dos sentidos. Também, foi realizada uma dinâmica com o objetivo de refletir sobre os conteúdos emergentes.

As questões existenciais enfrentadas pelos jovens ficaram explícitas por meio da contradição entre o “novo”, que se caracteriza pela liberdade sexual e busca da igualdade entre os gêneros e o “arcaico”, que reflete a herança do patriarcado com sua definição bem marcada dos papéis de gênero e estereotipias relacionadas à permissão do prazer sexual para cada gênero.

Se por um lado, metade dos alunos entre meninos e meninas concordam que a conta deve ser dividida pelo casal e que ambos têm o direito de ficar com quantas pessoas desejarem, por outro, mais da metade dos alunos e alunas acreditam nas antigas “leis” que regem os papéis de gênero, como a de que a menina que se “empolgar” e ficar com muitos ficará, inevitavelmente, com fama de “biscate”; porém, o menino na mesma situação será “o cara”, aquele que todas irão desejar, porque as mulheres não gostam de homens bonzinhos, mas dos sacanas. E para finalizar o raciocínio tão conhecido pelos nossos ancestrais, apenas com uma roupagem mais liberal, acreditam que isso acontece porque os mais cobiçados e sacanas são os mais bonitos, que têm melhor “pegada”.

Ainda sobre as questões de gênero, a contradição permeia o discurso destes jovens: o mesmo adolescente que defende que “o homem tem que ser o ativo e a mulher a passiva” acredita que a sexualidade deve ser encarada como algo natural para ser bom para os dois. A maioria concorda que atualmente “cada um faz o que quer”, mas que terá que enfrentar o preconceito ainda muito intenso, caso saia muito do padrão patriarcal do que se espera para homens e mulheres em relação aos prazeres sexuais e à diversidade sexual. Em contrapartida, há quase uma unanimidade nas respostas das garotas que apontam para a crença de que cada um age conforme seu desejo, independentemente de ser homem ou mulher, respeitando sua individualidade e igualdade entre os gêneros. Porém, essas mesmas garotas observam que apesar dessa “liberdade”, a mulher deve tentar se valorizar e ser discreta, visto que a sociedade ainda é machista e irá julgá-la; ou seja, elas têm a percepção de que apesar das mudanças, no final das contas, a corda ainda arrebenta para o lado mais “frágil”.

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, metade das respostas dos meninos relatam ideias parecidas, como de que os garotos precisam se valorizar também, mas sempre terão mais liberdade do que as garotas. Assim, apesar da experiência sexual acontecer cada vez mais cedo, e do comportamento liberal em relação à sexualidade e ao consumo de drogas ser uma prática na vida dos jovens, o sentido dessas experiências está carregado de contradições.

O discurso e a prática muitas vezes não vêm sincronizados, gerando conflitos entre a busca do prazer, a necessidade de transgredir regras e as ideias conservadoras e estereotipadas. Ideias essas que nos fazem lembrar Raul Seixas ao identificarmos a mesma “velha opinião formada sobre tudo, sobre o que é o amor, sobre o que eu nem sei quem sou”, visto que 70% dos garotos que participaram da atividade acredita que o que a garota mais precisa para iniciar sua vida sexual é de alguém que a ame e lhe transmita segurança emocional, sendo romântico, proporcionando algo “mágico” e “inesquecível”.

Acreditam ainda que elas irão sofrer com medo do que os outros irão pensar, caso descubram que já tiveram experiência sexual. Para a metade dos meninos o que o garoto mais precisa para iniciar a vida sexual é de segurança e de alguém que goste dele. Já para a outra metade, basta alguém que tope ter relação com ele, em especial uma mulher bem “gostosa”. A maioria deles defende que os meninos se arriscam mais, pensam em sexo e precisam mais dele, ou seja, lidam mais com conteúdos eróticos e pornográficos enquanto as meninas são mais “tranquilas”. Entretanto, esta mesma maioria defende que garotos e garotas têm o mesmo direito ao prazer sexual e a ter quantos parceiros desejarem.

A maioria das garotas expressa maior flexibilidade que os garotos em conceber a relação homoafetiva como algo natural e pertinente à natureza humana, uma vez que as diversidades sexuais ainda são tema de gozação e preconceitos, especialmente no social, quando os garotos são convidados a se posicionarem a respeito. Entretanto, na experiência, esses conteúdos são vividos de forma diferente, visto que a maioria de todos os alunos assume ter amigos(as) íntimos(as) que conseguiram assumir e se impor no grupo sendo respeitados, compreendidos e apoiados por eles. Assim, a grande maioria conta ter contato desde pequeno com a diversidade sexual, com pessoas que estimam na família e nas redes sociais, porém assumir uma postura muito liberal sobre o tema pode ser perigoso, pois temem que isso interfira em sua reputação, ou seja, na forma como serão vistos pelo grupo de amigos(as).

As ações que libertam o desejo e diminuem as desigualdades entre os gêneros entram em contradição com as “leis” que ditam a desigualdade neste campo, herdadas dos séculos de patriarcado e repressão do desejo feminino e da expressão da diversidade sexual. Esta herança se materializa como uma roupagem contemporânea por meio da ditadura do homem ideal, sarado, de mega performance sexual e bom partido e da mulher maravilha, que deve dar conta da jornada tripla entre trabalho e vida familiar e ainda ser “Super Poderosa” na estética e na vida sexual.

Deixamos as Mulheres de Atenas e seus maridos guerreiros, “orgulho e força de Atenas”, passamos pela revolução da “Cor de Rosa Choque”, a proposta de uma mulher mais integrada em sua condição criativa e política e um homem que começa a ter a oportunidade de deixar de ser o “Super-homem”, onipotente e solitário na conquista do mundo, e nos deparamos, na atualidade, com o exército das “Super Poderosas”.

Será que a liberdade e igualdade tão almejadas na revolução sexual foram conquistadas de forma satisfatória para homens e mulheres? Como a sociedade do espetáculo articula essas experiências da contemporaneidade? Com o objetivo de refletirmos sobre estas questões, de esclarecermos mitos e apontarmos preconceitos emergentes nos discursos dos alunos, continuamos nosso debate trazendo questionamentos em relação aos pontos de vista diversos, estimulando a dialética, o que em muitos momentos gerou forte angústia, própria da abertura para novas perspectivas que nos tira do senso comum, do sono da consciência frente a novos horizontes possíveis daquilo que desejamos ser e viver.

Neste percurso fascinante, a diversidade das experiências reflete no espelho da psique de cada um de nós os preconceitos, os antigos valores, as inovações e as contradições de nossas vivências.

* Maria Fernanda Marrega é Mestre em Psicologia pela USP, Psicóloga Clínica e Escolar e Membro do Grupo de Pesquisa Sexualidadevida-USP/CNPq.


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